sexta-feira, 1 de junho de 2012

A personificação da Sabedoria no livro dos Provérbios

Por Adriano Luchi

 A Sabedoria era um fenômeno intercultural no mundo antigo, tanto no mundo Oriental como no Ocidental (no ocidente com o nome de Filosofia -“amor à sabedoria”). Seu uso basilar era o de tentar responder à pergunta: “Como viver bem?”. A Sabedoria representa um modo de ver o mundo e um estilo para se viver nesse mundo percebido. Na tradição/literatura bíblica ela (a sabedoria) se compõe daqueles gêneros literários encontrados nos livros canônicos de Provérbios, Jó e Eclesiastes, e nos livros apócrifos de Ben Sirac e de Sabedoria de Salomão. Em Provérbios, os materiais principais de construção são os provérbios artísticos e as admoestações. Os discursos ou máximas de Provérbios 1-9 são entretecidos segundo o modelo das “Instruções”, que são um gênero clássico da sabedoria egípcia, mas, outrossim, segundo o dos “conselhos de um pai a seu filho”, recentemente encontrados num texto acádio de Ugarit. Até a personificação da Sabedoria tem antecedentes literários no Egito, onde foi personificada Maat, a Justiça-Verdade. A idéia da Sabedoria personificada se desenvolveu em Israel a parti do Exílio, quando o politeísmo não era mais uma ameaça religião Javista. Os sábios abordavam a sabedoria-conhecimento e a verdade não como se fossem alguma entidade abstrata, fria, sem vida; lidavam com elas tal como se lida com seres humanos, num relacionamento dinâmico de amor e amizade profundos. Essa maneira de se relacionar com o conhecimento e a verdade, personificada na Sabedoria, evoca uma dimensão humana na busca da sabedoria. Destarte, passaremos a ver bem mais de perto algumas facetas da personificação ou personificações da Sabedoria em Provérbios cap. 8.

 A Sabedoria- comerciante

A primeira humanização possível da Sabedoria (aqui emprego o termo humanização como sinônimo de personificação), entre outras arroladas nas perícopes do capitulo oito de Provérbios é a Sabedoria-comerciante. A Sabedoria na perícope que se desdobra do versículo 1-11 do capítulo em uso se nos mostra muito próxima de um comerciante, de um vendedor andarilho que se põe ao lado do caminho, e junto das encruzilhadas, diante das portas de acesso às cidades, gritando, chamando a atenção dos transeuntes para o que Ela tem a oferecer. Seu convite é para que se aproximem, e vejam o que se tem em seu domínio, em sua posse. Na sua tenda estão coisas mais preciosas e caras que ouro ou pérolas raras, ela dispõe e coloca suas mercadorias ao alcance de todos. A sagacidade, o bom senso, a verdade que se faz sentir vibrar no céu de sua boca, as sentenças justas, o discernimento, a disciplina e o conhecimento podem ser adquiridos diretamente da Sabedoria. Nenhuma jóia se compara ao valor de suas mercadorias. Nem a mais valiosa gema ofusca o brilho e valor de seus artigos. Os fregueses são atraídos pela Sabedoria-comerciante, quando essa passa a louvar suas peças. Sua propaganda se mostra deveras sedutora e convincente. A Sabedoria é dona de livre comercio e suas medidas de cambio são justas. Percebe-se uma dimensão bastante abrangente e significativa no seu convite, traduzidas em expressões como “a vós, homens, eu chamo” e “ dirijo-me aos filhos de Adão”, que emergem da própria perícope. O convite da Sabedoria-comerciante foi feito, compremos, então de suas mãos sabedoria.

 A Sabedoria Régia

Na perícope que se estende do versículo 12-21 do capítulo oito, temos outra fascinante personificação da Sabedoria. A Sabedoria nessa perícope faz um elogio a si mesma, mostrando sua realeza e grandeza desmedida. Essa personificação da um matiz nobiliárquico a Sabedoria, elevando-a ao status de Sabedoria-rainha que ajuda os reis e príncipes a governarem e promoverem a justiça. Ela traz consigo riquezas imensuráveis, honra desmedida. Os bens estáveis e indeléveis juntamente com a justiça são seu séquito. Mas ela alerta com gravidade: “Detesto o orgulho e a soberba, o caminho e a boca falsa”. É de sua posse o conselho e a prudência; debaixo do seu cetro estão a inteligência e fortaleza. Seu amor está para aqueles que a amam intensamente, que madrugam para encontrá-la. Em seu monólogo, nos diz a Sabedoria Régia que seu fruto e lucro são melhor e mais valioso do que ouro ou prata. Seu caminho, sua vereda é a senda da justiça e do direito, o que por si só nos fala do cunho libertador da Sabedoria, que se dispõe a levar seus bens ao que a amam, enriquecendo seus súditos.

 A Sabedoria Criadora

 Numa das mais notáveis perícopes da sabedoria bíblica (Provérbios 8. 22-31) , a Sabedoria descreve sua origem: “Javé me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos.” A Sabedoria apresenta seu nascimento na eternidade. Antes da criação da terra, ela já estava estabelecida, o que denota seu caráter atemporal. Ela é acompanhante de Javé na sua criação; é sua supervisora (mestre-de-obra), que atentamente fiscaliza o processo criacional. A Sabedoria criadora é o encanto de Javé todos os dias. Essa figura fascinante se diverte na presença de Deus e brinca entre os seres humanos. A atenção que o sábio concede a essa personificação da Sabedoria como mulher atesta a sua importância aos olhos dele. A sabedoria como mulher aponta para um forte indício da influencia cultural do Egito. Destaca-se na linhagem da Sabedoria a antiga figura egípcia de Ma’at, a personificação divina da justiça e da ordem do mundo. A sabedoria, esteticamente, se mostra sedutora, encontrando suas delicias entre os homens. Essa imagem oferece uma compreensão do papel das mulheres no Antigo Israel, e no movimento sapiencial. Talvez essa seja uma maneira indireta de as mulheres indicarem sua presença e influencia, dando sua contribuição na produção cultural-teológica de Israel. Falar da Sabedoria personificada na mulher não só possibilita a abertura de um horizonte hermenêutico novo, mas possibilita também o uso de uma nova linguagem para falar de Deus e de nossa experiência de Deus no mundo. Essa personificação da sabedoria na figura feminina ainda se presta para efeitos democratizadores, excluindo qualquer tipo de monopólio, tornando-a presente em realidades sócio-culturais bem diversificadas.

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