sábado, 2 de maio de 2009

A reforma e o modernismo

Por Julio Paulo Tavares Zabatiero
O tema sobre o qual iremos refletir esta noite é tão adequado quanto anacrônico. Adequado porque o Protestantismo é parceiro da modernidade: ambos nasceram mais ou menos ao mesmo tempo e se desenvolveram em permanente processo de amor-ódio, Anacrônico na medida em que é moeda corrente hoje em dia se falar da pós-modernidade, assumindo senão o fim da modernidade, pelo menos a sua agonia final. Todavia, se não fizermos as pazes com a modernidade, nós, protestantes, não seremos capazes de lidar com a realidade dita pós-moderna em que vivemos atualmente. E essa realidade meio moderna, meio pós-moderna nos apresenta desafios significativos. Para nossa reflexão, nesta noite, gostaria de destacar talvez o maior deles: o desafio da identi-dade! Colocado em termos cotidianos: como podemos continuar sendo protestantes (lute-ranos, presbiterianos, anglicanos, etc...) em meio a tantas formas diferentes de viver a fé cristã e organizar a igreja de Cristo?Tomo a liberdade de iniciar nossas conversas trazendo duas outras vozes ao diálogo. A primeira, de um cientista social: “A questão da identidade está sendo extensamente discu-tida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas i-dentidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades mo-dernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” A segunda voz é a do eminente teólogo reformado europeu J. Moltmann que, já em 1974, afirmava: “A vida cristã de teólogos, igrejas e seres humanos se defronta hoje mais do que nunca com uma dupla crise, a crise da relevância e a crise de identidade. Essas duas crises são complementares. Quanto mais a teologia e a Igreja procuram tor-nar-se relevantes para os problemas atuais, tanto mais são lançadas na crise de sua pró-pria identidade. Quanto mais elas buscam sustentar sua identidade nos dogmas tradicio-nais, nas noções morais corretas, tanto mais irrelevantes e desacreditadas elas se tor-nam.”
I – O Protestantismo e a Crise da Identidade
Nas Igrejas Cristãs Protestantes, a questão da identidade passa pelo eixo da ex-periência do tempo. A experiência cristã protestante do tempo, predominante na moderni-dade, tem o passado como referência determinante para o presente, na medida em que a cruz de Cristo servia como garantia histórico-escatológica do progresso da história salvífi-ca, em contraposição à decadência de valores na história profana. Nascidas no desabrochar da modernidade, as Igrejas Protestantes desde cedo enfrentaram a questão da identidade diante de um mundo em rápidas alterações. A solu-ção mais forte para esse dilema se baseava no princípio da sola Scriptura, que trazia ao debate uma fonte aparentemente sólida e inexpugnável de verdade e certeza. A Escritura, vista como a Palavra de Deus tornada simultaneamente histórica e imutável, cumpria uma função de ancoragem na luta pela construção da Igreja e da sociedade cristãs nos países e rincões reformados. Cedo, porém, se percebeu que a Escritura, aparentemente sólida, era, na verdade, âncora frágil para a construção da identidade, à qual vieram se somar as confissões de fé, nunca igualadas teologicamente à Escritura, mas facilmente sobrepos-tas àquela pragmaticamente. As confissões de fé tornaram-se, então, as âncoras protestantes da identidade, que aparentavam garantir a permanência forte do passado no presente, passado que as-sumia, assim, papel determinante na construção da identidade. Para nós, protestantes em geral, o passado é a garantia da fidelidade à vontade de Deus, ao qual se deve sempre voltar e tentar resgatar, a fim de que caminhemos sempre firmes e seguros rumo à con-sumação dos séculos. Conseqüência dessa atitude para a vida cristã é a da perda da relevância e da estabilidade, na medida em que traz à tona o permanente dilema de enfrentar os desafi-os do presente, sem perder a identidade historicamente congelada no passado confessio-nal que já não é mais entendido e, na maioria dos casos, sequer conhecido. Para as Igrejas, conseqüência forte é a sua fragmentação em tendências teológico-confessionais antagônicas, cada qual assumindo ser a verdadeira portadora da verdade confessional, algumas mais belicosas do que outras.Em contraste, a experiência pós-moderna do tempo é marcada pelo presente, no qual se dá a paralisação do tempo, na medida em que se nega o telos em direção ao qual a história humana caminhava progressivamente – e isto vale tanto para a história profana, quanto para a salvífica. Fica claro, assim, o problema dramático que a pós-modernidade coloca para a experiência/identidade cristã – se não há telos, não há progresso (ainda que salvífico). Se não há progresso, a história chegou ao seu fim (o famoso título do livro de Francis Fukuyama). O que é o fim da história na pós-modernidade neo-liberal? Nada mais do que a padronização da mesmice. Para as Igrejas, a conseqüência mais drástica é a do relativismo anárquico e sem critérios, aprisionando pessoas e Igrejas às unções, catarses emocionais, peregrinações religiosas; em duas palavras: ao consumismo religi-oso e aos fundamentalismos. Em síntese, na modernidade, a identidade fica aprisionada a um passado conge-lado na história, enquanto na pós-modernidade, fica aprisionada a um presente igualmen-te congelado historicamente. A atitude pós-moderna em relação ao tempo não resolve os dilemas da modernidade e ainda lhes acrescenta o seu próprio, ficando cada pessoa su-jeita ao seu próprio e ilusório arbítrio, ou às novas formas de fundamentalismo, religiosas ou não. O Protestantismo, porém, à luz da Escritura e de sua própria história pode enfren-tar esse desafio da construção da identidade. Como??
II – O Protestantismo e a Construção da Identidade
A fé cristã, em sua versão protestante, não é moderna, nem pós-moderna, o mesmo valendo para a sua experiência do tempo e da identidade. Como resolver o dile-ma? O ponto de partida da experiência do tempo na fé cristã é a tensão escatológica do já / ainda-não (Marcos 1,14-15), é a futuridade de Deus que invadiu o presente (passado pa-ra nós) da história e o preencheu de um novo sentido e de uma nova dinâmica. A identi-dade cristã não se configura, nem a partir do passado, nem a partir do presente – mas do futuro que se fez história em Jesus. Não se configura nem a partir do tendo-sido, nem do sendo, mas do poder-vir-a-ser que, a partir do passado já se faz presente historicamente. Identidade, então, não se resgata (fixação no passado), nem se perde (temor do presen-te), mas se constrói. Não será esta uma tradução fiel do princípio de que a Igreja Refor-mada está sempre se reformando?Vejamos, em primeiro lugar, o fundamento teológico dessa proposta: “Caracteri-zamos a fé dos cristãos essencialmente como esperança da ressurreição. Liberdade, à luz desta esperança é a paixão criadora pelo possível. ... Ela está orientada para o futuro, o futuro de Deus que há de vir. Pois o futuro de Deus é o reino sem limites das possibili-dades criadoras, enquanto o passado é o reino limitado da realidade. A paixão criadora está sempre orientada para o projeto de um tal futuro. ... Esta visão futurista da liberdade por muito tempo deixou de ser percebida, porque a liberdade da fé cristã não era entendi-da como participação no agir criador de Deus e porque a cristandade era dominada mais pelo respeito religioso do que pela esperança messiânica. Mas na verdade, liberdade na fé é criatividade que rompe as barreiras, nas ante-salas do possível.” Destaco o texto de Hb 11:1. Para nós, que vivemos a partir da justificação pela graça mediante a fé, a clássica definição neotestamentária da fé, em Hebreus 11,1 é um texto fundamental, ainda que - reconhecidamente - complexo, do que dão testemunho as diversas traduções do mesmo, por exemplo: “A fé é uma posse antecipada do que se es-pera, um meio de demonstrar as realidades que se não vêem.” (BJ) “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se vêem.” (TEB) “Fé é a consistência do que se espera, a prova do que não se vê.” (BdP) “Fé é a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem.” (RAB) O que é claro no versículo é a orientação da fé para o futuro divino prometido ao ser humano e antecipado escatologicamente em Cristo. Trago dois comentários ao nosso diálogo com o texto, que podem nos ajudar no desafio da construção da identidade: (1) “Fé verdadeira, isto é, fé que se mantém até o fim (Hb 10,39), é a garantia (ob-jetiva, não subjetiva) da salvação (certeza das coisas que se esperam). O crente é asse-gurado de que irá receber aquilo que ainda não está presente, mas que é prometido por Deus (v. especialmente Hb 6,12.15; 11,33)” Ora, se é assim, a identidade protestante se baseia na promessa divina que ainda irá se consumar no futuro, mas que já se manifestou em nossa história e em nossa vida pessoal! Nessa promessa, depositamos nossa fé.(2) “Tendo em vista que a preocupação aqui é com a manutenção de fidelidade perseverante em uma época de provação, e visa, provavelmente, apoiar a manutenção da crença descrita em 10,38, [a fé elenchos (com hypostasis)] deve ser vista como o oposto da postura de retraimento e languidez. Um lugar para resistir e ficar estável só pode ser encontrado no mundo invisível que é o objeto da esperança e que, para a fé, é a única re-alidade.” O segundo passo concreto que devemos dar para construir a nossa identidade em resposta ao modernismo, é a resistência perseverante contra tudo o que nos afasta de Cristo e de Deus!Tornando ainda mais concreta a nossa proposta, a identidade cristã em resposta à modernidade deve ser construída a partir da futuridade escatológica de Deus em Cristo. E assim, torna-se inevitável compreender que a natureza da igreja é missionária, e não sacramental, jurídica, litúrgica ou pedagógica. Mais uma vez, trazemos ao diálogo a con-tribuição de Moltmann: “Vida na expectativa da parusia transcende em muito o simples aguardar, precaver-se e permanecer firme na fé, levando à iniciativa ativa. É uma vida na antecipação do vindouro, em expectativa criadora. Homens não vivem apenas de tradi-ções, mas também [eu diria, principalmente] de antecipações. Em temores e esperanças antecipam seu futuro ainda desconhecido e orientam suas vidas de acordo com ele e a-daptam a ele sua vida. A expectativa do futuro de Cristo coloca o presente na luz do Vin-douro e torna a vida corporal experimental no poder da ressurreição. Assim, a vida se tor-na uma vida de ‘cabeça erguida’ (Lc 21,28) e de ‘porte ereto’ (Bloch). Torna-se uma vida que, no empenho por justiça e paz neste mundo, está dedicada à colaboração no reino de Deus.” (O Caminho de Jesus Cristo, Vozes, 1993, p. 450s.)
O Protestantismo corre o risco de desaparecer com a modernidade, de se tornar uma instituição religiosa irrelevante, incapaz de participar e transformar a sociedade. Corre o risco de ser engolido pelas novas formas de igrejas cristãs sem passado e sem história. Para não ser capturado pelo desaparecimento, cabe-nos assumir concretamente no dia-a-dia o lema Igreja Reformada sempre se Reformando. Cabe a nós, na fé, na resistência e, principalmente, na ação missionária, construir a identidade protestante nos nossos dias tão carentes da presença do Evangelho de Jesus Cristo, a justiça de Deus para nós e pa-ra toda a humanidade! A ‘Mensagem de Upsala’ (1968) é hoje mais atual do que nunca: ‘Na confiança no poder renovador de Deus vos conclamamos: participai da antecipação do Reino de Deus e fazei com que já hoje se torne visível algo da nova criação que Cristo consumará em seu dia’!

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