Por Leandro Louzada
A palavra (hiéreus), que já encontramos nos evangelhos, foi escolhida pelos tradutores gregos da bíblia para traduzir o hebraico kohén, termo muito freqüente nos textos do AT. Com ele, designa-se as pessoas encarregadas das funções religiosas. Ela é empregada para designar tanto os sacerdotes pagãos como os sacerdotes israelitas. O primeiro personagem a quem a bíblia atribui o titulo de kohén é melquisedeque, rei de uma cidade da Palestina nos tempos de Abraão; o segundo é um sacerdote egípcio do tempo de José. O começo do livro de Êxodo fala de sacerdote midianita que se tornou sogro de Moises. Somente depois da saída do Egito, a bíblia põe em cena os sacerdotes israelitas, porém, estes ocupam um lugar de proeminência, sobretudo no Livro de Levítico, onde o título kohén chega a repetir-se até 55 vezes em um único capítulo(Lv 13).
A palavra grega (hiéreus) se relaciona, por sua origem, com a noção de sagrado (hiéros); o sacerdote é o homem do sagrado. O sentido primitivo da palavra hebraica kohén não é tão fácil de ser descoberto. Alguns a colocam em relação com uma palavra acadiana, kânu, que pode ter o significado de inclinar-se : o kohén seria, então, aquele que se inclinava diante da divindade, o que adorava. Outros pensam, pelo contrário, em uma raiz verbal que significa “estar de pé” (kun) e vêem no kohén aquele “que se mantém de pé na presença de Deus , como diz da tribo de Levi, um texto de Deuteronômio(10:8), utilizando, contudo, um verbo diferente. A outra hipótese que critica estas duas hipóteses e propõe, em seu lugar, uma etimologia baseada em uma raiz siríaca que expressa a idéia de prosperidade: o kohén, o sacerdote antigo, é aquele que procura a prosperidade, é o homem “das bênçãos”. Esta última perspectiva, muito positiva e atrativa, deve-se reconhecer que é perfeitamente bíblica.
Mais que a etimologia do título, são as atribuições do kohén estendiam-se dentro de um leque muito grande. Pode-se apresentar o kohén como o homem do santuário, aquele que tem o direito de tocar os objetos sagrados e é admitido na presença de Deus, ou como o homem encarregado de oferecer os sacrifícios, ou, também, como aquele de quem se espera um oráculo, o que dá as bênçãos, o que decide sobre as questões de pureza ritual.
Entre estas diversas atribuições, qual era a mais característica? A discussão sobre esse ponto é possível se levarmos em consideração, antes de tudo, que o papel do sacerdote antigo sofreu variações através dos séculos. Alguns autores insistem em sua função sacrificial, a ponto de traduzirem, sempre, a palavra kohén por “sacrificador” nos escritos do AT, e a palavra (hiéreus), nos NT.
Quanto a(archiéreus), em lugar de Sumo Sacerdote, o traduzem como “soberano sacrificador”. Trata-se de uma insistência unilateral que não correspondem à realidade tão rica da concepção antiga. O traço mais característico do sacerdócio não era o oferecimento de sacrifícios, havia outros
Homens que poderiam exercer essa função, mas a relação intima com o santuário e seu papel principal era o de pronunciar oráculos.
A função oracular do sacerdote causa estranheza em nossos dias, ainda mais quando se sabe que era exercida com ajuda de uma espécie de jogo de dados. Em situações complicadas, consultava-se o sacerdote e esse tinha que determinar a conduta a seguir, servindo-se, para isso, do “Urim” e do “Tumim”. Esta é, certamente, a primeira das funções que vemos ser atribuídas ao sacerdote no texto arcaico da benção dada s Levi. O que seria exatamente o Urim e o Tumim, não sabe ao certo, porém, os relatos bíblicos nos indicam que se tratava de objetos sagrados utilizados pelo sacerdote para lançar sortes e decidir, desta maneira, a solução dos casos difíceis. O mínimo que se pode dizer a respeito dessa prática é que ela nos parece pouco razoável. Temos que confessar que corresponde a um nível muito primitivo de religiosidade, mais próximo da superstição do que de uma vida espiritual autêntica. No entanto, seria um equivoco somente desprezá-la, já que, consideradas todas as coisas, vê-se, aqui, um esboço de uma atitude espiritual fundamental: a busca da vontade de Deus.
Apresentavam-se, então, de forma mais exclusiva, como os homens do santuário. Este vínculo entre o sacerdócio e o santuário é atestado universalmente. O sacerdote é eleito e instalado para o serviço no santuário e ninguém mais, além dele, é autorizado a assumir este cargo.
No santuário, os sacerdotes realizavam certas cerimônias de culto, sendo o sacrifício a de singular importância. Encarregado de oferecer sacrifícios em nome da comunidade, o sacerdote tinha que valer para que ninguém participasse do culto estando em situação de impureza ritual. A presença de um homem “impuro” poderia desagradar a Deus e provocar a recusa das ofertas. Por conseguinte, os sacerdotes tinham que advertir aos filhos de Israel de sua impurezas, para que não morram nelas, ao contaminar o tabernáculo que esta no meio deles. A este papel, um tanto negativo, relacionado com a impureza, adicionava-se outro papel, mais positivo, que se expressava na benção. O sacerdote era o encarregado de “ abençoar o povo com o Nome”, abençoar com o nome quer dizer, bendizer pronunciando o Nome revelado. O livro de Números informa, com precisão, a maneira na qual os sacerdotes teriam que abençoar aos filhos de Israel. A formula da benção repete, em três ocasiões, o nome de Yahweh e, depois de haver pronunciado Ele próprio, Deus conclui dizendo, assim, porão meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei.
Efetivamente, toda a organização do culto sacerdotal antigo baseava-se na idéia de santidade e na convicção de que é preciso ser santo para poder aproximar-se de Deus .Porém, então, concebia-se a santidade de uma maneira distinta da que se concebe na atualidade. Em nossa forma de pensar, a santidade é quase um sinônimo de perfeição moral e evoca todo um conjunto de virtudes eminentes. Em um processo de canonização, a primeira etapa consiste em verificar se a pessoa que morreu em aroma de santidade havia chegado, finalmente, ao heroísmo na prática das virtudes cristãs. A mentalidade antiga não pensava em vincular a santidade à perfeição. Para os antigos, santo não se opunha a imperfeição, mas a profano. A este problema, o culto antigo respondia propondo uma solução ritual, mais concretamente, um sistema de separações rituais, sendo o sacerdote uma das que tinham o papel de primeira ordem. Por trás desse movimento ascendente de separação, esperava-se outro movimento descendente de bênçãos. Se o sacrifício era digno de Deus, tinha que ser aceito. O sacerdote que o oferecia obtinha, então, o favor divino e o povo representado pelo sacerdote encontrava-se em boas relações com Deus.
A santidade peculiar aos sacerdotes também era indicada através das vestes que foram instruídos a usar. Feitas dos materiais mais seletos e com a melhor perícia, essas vestimentas adornavam os sacerdotes com beleza e dignidade. O sacerdote usava uma túnica , um cinto, uma capa e calções, tudo feito a linho fino. A túnica era uma peça longa, branca e sem costura, com mangas que quase atingiam os pés. O cinto, embora em parte alguma tenha sido descrito em particular, era usado por cima da túnica. A mitra do sacerdote era um boné simples e bem ajustado. Por baixo da túnica, ele devia usar calções de linho, sempre que penetrasse no santuário. O sumo sacerdote era distinguido por peças adicionais do vestuário, que consistiam de uma sobrepeliz, uma estola, um peitoral e uma mitra especial. A sobrepeliz, que descia do pescoço até abaixo dos joelhos era de cor azul e era muito simples, exceto que na sua fímbrias eram alternadas romãs e campainhas que ali foram fixadas. As romãs tinham o propósito de ornamentar, as campainhas tinham por finalidade transmitir á congregação, que esperava, todo movimento do sumo sacerdote, quando ele adentrasse o santo dos santos, no dia da expiação. A estola era composta de duas peças de linho feitas com ouro, azul, púrpura e escarlate e unidas nos ombros com tiras, sobre cada ombro havia uma pedra preciosa gravada o nome das doze tribos de Israel, seis de cada lado, na ordem de nascimento. Desta maneira o sumo sacerdote representava a nação inteira de Israel, em seu ministério de mediação. O peitoral, uma algibeira com 0.22 m2, era a peça mais luxuosa, maginificente e misteriosa do vestuário do sumo sacerdote.
Graças a esse esquema dinâmico, esclarece-se o funcionamento do sacerdócio; torna-se possível colocar certa ordem nas atribuições dos sacerdotes, cuja multiplicidade poderia, de outra forma, parecer extravagante. O elemento central é a acolhida favorável diante de Deus. O sacerdote é, antes de tudo, o homem do santuário. Se não for agradável aos olhos de Deus, tornar-se-á um personagem inútil. Pra ser aceitável diante de Deus, tem de submeter-se a todas as prescrições rituais que o separam do mundo profano e velar, além disso, para que o povo se coloque em estado de pureza.
É fácil comprovar que todo esse conjunto responde a uma aspiração profunda: o desejo de viver em comunhão. O papel do sacerdote consiste em abrir ao povo a possibilidade de comunhão com Deus e um com o outro, pois uma não se realiza sem a outra. Em outras palavras, o sacerdócio pode ser definido como um intento de mediação.
A mediação supõe, normalmente, um aspecto de separação, uma das funções do mediador é a de interpor-se entre as partes para evitar um contato direto que poderia ter conseqüências nefastas. No caso do sacerdócio antigo, por conseguinte, toda a questão está em discernir se o sistema de separações rituais obtinha um resultado positivo, a saber, se facilitava o estabelecimento de boas relações entre o povo e Deus. Está claro que o resultado da mediação sacerdotal dependia do valor do único contato anual que se tentava procurar com Deus. Se esse contato era autentico e positivo, a empreitada teria um bom fim e seu êxito justificava todo o sistema. Portanto, não sem razão, a Epístola aos Hebreus, em sua avaliação do sacerdócio antigo, centraliza a sua atenção na cerimônia do Kippur(o dia do perdão).
Para finalizar, gostaria de assinalar uma conseqüência histórica posterior da evolução que acabamos de recordar. Dado que o culto sacerdotal do AT havia se fixado de maneira exclusiva em um santuário único, a destruição desse santuário, no ano de 70d.C., trouxe consigo a supressão do culto sacerdotal. A partir desta data, o povo judeu não teve mais nem Templo nem altar, deixando de oferecer os sacrifícios prescritos pela lei de Moisés. Não se celebra mais a liturgia sacrificial do Kippur, mas somente se comemora a data. O Sumo Sacerdote não mais exerce a sua mediação.